Hoje liberaram a imagem do ano: finalmente conseguimos tirar a foto de um buraco negro!
Antes de mais nada, agora finalmente conseguimos prova de que um buraco negro existe. Quer dizer, antes a gente só tinha o pato. Nós sabíamos que existia uma coisa que grasnava como pato, voava como pato, nadava como pato, logo não tinha como não ser um pato. Mas agora nós conseguimos *ver* o pato, é outro nível de confirmação.
E como nós conseguimos ver um buraco negro? Quer dizer, buraco negro é negro né? Em princípio tinha que ser invisível. Por sorte, alguns buracos negros tem accretion disks, que são como os anéis de Saturno. Esse buraco negro que foi fotografado, no centro da galáxia M87, está bem alinhadinho com a gente, então é como se estivéssemos vendo ele "de cima". O buraco negro em si está no meio da região escura dentro do anel.
E porque escolheram justo esse da M87? Bem, ele é o segundo maior para a gente. Buracos negros existem em todos os tamanhos, mas para tirar foto o que interessa é o tamanho aparente visto da Terra, esse que você mede em ângulos no céu. O maior de todos seria o Sag A* no centro da Via Láctea, o M87 é o segundo maior (não consegui achar um motivo para não terem feito do Sag A*, talvez ele não tenha accretion disk).
Pela foto tem mais um monte de informações para tirar. Primeiro dá para tirar o tamanho físico, o diâmetro da parte escura na foto é por volta de um dia-luz, o que é mais ou menos o tamanho do sistema solar. A parte escura é mais ou menos o ISCO (a menor órbita estável de fótons em volta do buraco negro), mas não é o ISCO completamente porque tem uns efeitos de lente gravitacional distorcendo. O horizonte de eventos em si é linear com a massa, como a massa dele é 6.5 bilhões a massa do sol, então o raio do horizonte de eventos deve ser uns 0.37 dias-luz, se eu não errei a conta.
O anel em si é assimétrico, uma metade é mais brilhante que a outra. Isso é por conta do Doppler, o accretion disk gira tão rápido, mas tão rápido, que o efeito Doppler fica visível mesmo nessa distância pequena entre eles. Por conta, disso, também dá para deduzir que o buraco negro está girando no sentido horário haha. Quer dizer, o accretion disk está girando no sentido horário, o buraco negro em si poderia estar rodando com um vetor diferente, mas aparentemente o vetor de rotação dos dois é quase igual para esse buraco negro.
Inclusive isso é outra coisa que tiramos da foto, esse buraco negro tem métrica de Kerr. Tem quatro tipos básicos de buracos negros, eles podem ser com ou sem rotação, e com ou sem carga elétrica. Parece que essa foto só é consistente com um buraco negro que gira, mas não tem carga. Também deu para excluir um monte de outras possibilidade de "coisas que deixam buracos no céu", por exemplo, os dados são suficientes para concluir que esse não é um wormhole. Só tem duas alternativas que são mais difíceis de excluir (uma boson star, que é tipo uma "estrela de dark matter", ou uma gravastar, que é tipo uma "estrela de dark energy"). Mas a gente entende tão pouco de dark matter ou dark energy que isso não é falsificável com nosso conhecimento.
O método usado para tirar a foto em si é fascinante. Nenhum telescópio na Terra tem resolução para ver o buraco no meio do anel, então o jeito foi usar literalmente a Terra como telescópio. Nos usamos vários radio telescópios pequenos espalhados pelo mundo como se fossem um só telescópio gigante apontando para o buraco negro.
O problema nesse caso é que a imagem fica ill-posed. Imagina uma tv lcd com seis dead pixels. O dado bruto que coletamos foi exatamente o contrário, é como se fosse uma tv cheia de dead pixels, e só tem seis pixels acesos. Tirar a imagem inteira só de seis pixels é impossível; ou melhor, é ambíguo: tem várias imagens possíveis que podem ter gerado esses pixels. Dá melhorar um pouco apontando os telescópios para o buraco negro ao longo de um dia inteiro, como a Terra está girando, é como se tivéssemos seis tracinhos ao invés de seis pontos. Mas não é o suficiente.
O jeito então é sair fazendo suposição para completar a imagem. Não é diferente de como fazemos tomografias. A tomografia bruta que sai do aparelho no hospital é 1D, a gente usa algoritmos do tipo backprojection para transformar em 2D. Para recuperar a dimensão perdida, você sai fazendo suposições, por exemplo, você supõe que a imagem é contínua (não tem como não ser né).
No caso desse buraco negro, dava para usar dados de outras frequências como parâmetros de inicialização (por exemplo, medidas fora do vísivel, em x-rays). Mas ainda não era suficiente, só com isso não tinha como distinguir se era um anel simétrico, um anel assimétrico, um disco inteiro sem buraco, um par binário, etc. Aí o jeito foi apelar: eles construíram uma simulação usando as equações do Einstein e as variáveis que a gente já conhecia (massa, x-rays, etc), deixaram a simulação rodando, e depois usaram a saída da simulação como parâmetros iniciais na reconstrução. O processo é super complicado e lento, por isso que a imagem demorou tanto para sair (os dados foram coletados em 2017, só agora em abril de 2019 que a imagem ficou pronta).
Uma parte curiosa é que esses dados ocupam muito, muito espaço, vários petabytes. Não tinha como ficar mandando de um laboratório para outro pela internet, então eles comunicavam por avião ("não subestime a largura de banda de um caminhão cheio de hds"). Durante o press release, um dos cientistas levou o rack com hds para mostrar, deixou em cima de um banquinho (Aí, na hora das perguntas, o cara ao lado usou o rack como descanso de copo. Herege, isso tinha que estar num museu, não servindo de apoio de copo haha).
Aliás, lendo os papers você tem noção de quem eram os cientistas que fizeram esse trabalho. O algoritmo de reconstrução chama "PIpeline for the Calibration of high Angular Resolution Data" (PICARD), e o algoritmo de redução de dimensionalidade é o Advance Long Baseline User Software (ALBUS). A biblioteca em python que implementa o ALBUS é a ParselTongue. Manjei esses cientistas.